Um leão anda sorrateiro e misterioso numa noite de lua, trazendo consigo somente seus instintos, seu silêncio e a sua própria sombra…

Seus dias há muito não eram os mesmos e seu tempo estava terminando…
Tinha que tomar a decisão…
Sorumbático, andava à beira do rio, com uma angústia que lhe consumia o pouco que restava do seu antigo humor… Estava se tornando também irreconhecível por dentro…
Andava a esmo, sem se importar com a água quase gelada que lhe molhava pata sim, pata não.
Parou e olhou mais uma vez para o céu, movimento esse agora obsessivo, que a cada noite se tornava mais frustrante…
E o tempo passando…
Cansado de andar, deitou-se ainda à beira do rio e pôs-se a pensar, talvez pelas últimas vezes…
Agora estava ali ele, à beira do rio, prisioneiro de um corpo de leão…
Um leão com alma humana e com um coração prisioneiro de alguém… Ele estava duas vezes preso: preso ao corpo e com o coração e a alma presos.
Só a sua mente ainda era livre, e era ela quem lhe ministrava as pequenas doses de fantasias, que eram intercaladas por extensas crises existenciais.
Vale a pena voltar a ser humano? Vale a pensa passar a vida fugindo do que eu sinto? Vale a pena me prender a ser tão volúvel? Por que sofro?
E a angústia do tempo voltava…
Estava virando mais leão a cada dia. Aos poucos estava perdendo a alma e o coração humanos…
Se não agisse a tempo, nada mais poderia ser feito…
Estava se sentindo empedrecer.
Como leão, aprendera a matar porque tinha fome, justo ele que, como humano, vivia porque tinha fome… daquele alguém…
Como leão, aprendera a se esgueirar dos perigos, justo ele que, como humano, o que mais queria era se atirar aos perigos daquele alguém…
Como leão, aprendera a lutar contra os perigos, justo ele que, como humano, queria era viver perigosamente nos braços daquele alguém, em paz…
Oscilava esses pensamentos com os seus sentimentos humanos e voltou a se lembrar do momento em que se deu conta de que aquele amor o estava tornando um animal, e que desejou ser um para não sofrer prisioneiro de uma paixão não-correspondida por alguém volúvel como o vento.
Será que os leões sofrem por amor? E divagando intensamente em sua dor, desejou muito ser um leão…
Estava absorto em seus pensamentos e tristezas, mas desejou isso tão intensamente e tão virado para a sua própria dor, que não percebeu a estrela no céu que se mexia…
Agora, só lhe restava um tempo, que seu instinto humano ainda sentia…
Esse instinto que pressentia a vinda de outra estrela cadente… a última, antes dele virar um leão por completo e para sempre, e sua única chance de voltar à forma humana…
Mas eu quero isso? Quero sofrer tudo de novo?
E a lembrança daquele sorriso, daquelas gargalhadas, dos dias intensos ao lado daquela pessoa e daquelas noites intensas ao lado, por cima, por baixo, por dentro daquela pessoa, tudo ainda eram lembranças presentes e doídas daquela alegria que se esvaecia a cada sensação de ser trocado por outra pessoa, daquela felicidade que estremecia a cada crise de ciúmes merecido…
E o tempo…
De repente, ao olhar para cima pela enésima vez, ele avista ao longe a estrela que se mexe.
Sem resposta, sem tempo e só instinto, ele se levanta subitamente e começa a correr desesperadamente em direção à estrela.
Corre, corre cada vez mais e mais, até que pula na ponta da estrela fugitiva…
Não se sabe se virou humano ou se continuou leão ou mesmo se virou alguma outra coisa… Nunca mais foi visto. Dizem que faz parte de uma constelação. Leão? Gêmeos? Virgem? Libra?
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