Mais pontual do que o esperado, Voila Marques surge no café do hotel para a nossa entrevista. Ficamos na dúvida sobre quem chegou primeiro: se ela, os cabelos vermelhos ou o batom cor de vinho escandaloso.
O visual preto e estiloso perde a austeridade inicial assim que um largo sorriso nos recebe, como se já fôssemos velhos contrabaixistas conhecidos.
Pedimos um sorvete e, entre uma colherada e outra, logo surge a primeira confissão: “Sou viciada em sorvete. Na minha última turnê com a OSB, tomei onze bolas de sorvete em Belém do Pará, que era a primeira cidade. Depois disso, saí pisando na jaca pelo mapa do Brasil! Quem falou que “comer e coçar só dependem de começar” não conhecia o sorvete! (risos)
Voila é professora de contrabaixo e quase autora de um livro sobre orientações contrabaixísticas. Ela foi também contrabaixista por 19 anos da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), tendo sido comunicada da demissão, junto com mais 13 colegas, através de um polêmico e controverso telegrama num dia 24 de dezembro, véspera de Natal.
Hoje, em sonho, entrevistaremos a contrabaixista carioca Voila Marques.
Blog: Como foi para você ser demitida de uma orquestra na qual tocou por 19 anos?
Voila: Foi um baque muito grande, porque nada havia sido mencionado ou sugerido antes.
O maestro elogiou a orquestra pela temporada, teve festa de confraternização na terça-feira, e o telegrama chegou para 15 músicos no sábado, véspera de Natal.
Eu sustentava a minha casa com dois filhos pequenos. Minha caçula tinha 1 ano de idade e meu primogênito tinha 2 anos e meio. De uma hora para outra, fiquei sem 2/3 da minha renda mensal.
Blog: Você falou em 15 músicos. Não eram 14?
Voila: A lista original era de 15 músicos. Um deles foi tirado dela, provavelmente por saber de muitas coisas que não deveriam vir à tona, e o outro foi substituído, às carreiras, por outro músico, que foi demitido no lugar desse. Quem tem padrinho não morre pagão e não rima com demissão, não é?
Blog: Mas a orquestra pagou os seus direitos trabalhistas, não?
Voila: Sim, mas o que recebi de fundo de garantia foi pouco, porque o cálculo feito é proporcional ao salário e, por muitos anos, os salários estiveram baixíssimos. O dinheiro recebido foi embora em aluguel, latas de leite, fraldas, remédios, escola, planos de saúde e analista, entre outras contas.
Blog: Como você ingressou na orquestra?
Voila: Ingressei por concurso, mas como a orquestra é privada, qualquer músico pode ser mandado embora da noite para o dia, como foi o caso dos 14 músicos.
Blog: A que você atribui a sua saída?
Voila: Talvez a um pequeno atrito com uma pessoa de dentro da fundação, por causa de dois atrasos meus justificados, ou mesmo porque alguém poderia não ir com a minha cara, sei lá.
Deviam estar precisando demitir músicos para que uma suposta renovação da orquestra fosse visível pela mídia, e fui uma das escolhidas.
Tive dois atrasos: um quando precisei levar minha filha, então com 10 meses ao médico, a uma consulta de urgência, com uma alergia enorme e, com isso, cheguei a um concerto didático nos primeiros acordes da primeira música, o Hino Nacional.
O outro atraso -a um ensaio do naipe de cordas com o spalla da orquestra- aconteceu dois dias depois, devido à falta sem aviso da minha empregada.
Mais uma vez, esforcei-me para não faltar ao trabalho e cheguei ao ensaio, após três telefonemas dados à pessoa responsável pelo ponto da orquestra, com 50 minutos de atraso.
Nunca consegui entender os reais motivos das demissões, porque nada nos foi dito.
Só sei que continuaram na orquestra colegas que faltaram por motivos bem mais sem motivos que eu, e até colegas que chegaram bem atrasados a concertos de assinatura no Teatro Municipal, assim como continuaram na orquestra muitos colegas que tocavam bem menos do que alguns dos despedidos, entre outras coisas estranhas.
Blog: Os músicos da orquestra se mobilizaram contra as demissões?
Voila: Houve duas ou três assembléias no Sindicato dos Músicos, mas isso tudo aconteceu durante as férias orquestrais e a maioria dos músicos estava viajando. Nessa mesma época, os concertinos também perderam seus cargos remunerados e alguns chefes perderam a chefia de seus naipes.
Com isso, todos os músicos ficaram assustados e com medo.
Se colegas com muitos anos de orquestra podiam ser despedidos, se um chefe de naipe podia ser despedido, se colegas com poucos anos de orquestra podiam ser despedidos, se chefes de naipe e concertinos podiam perder cargos, então qualquer um poderia também estar na rua de uma hora para outra.
A orquestra ficou muito fragilizada, e cada um tratou de pensar em si. Para coroar de êxito as demissões, a fundação aumentou os salários dos músicos que continuaram na orquestra e nada mais se fez.
Blog: O que aconteceu com os músicos demitidos?
Voila: A maioria continuou a tocar em outras orquestras, mas três abandonaram a carreira e um virou alcoólatra.
Blog: Como você vê a recente situação dos 33 músicos demitidos da OSB por se recusarem a prestar concurso?
Voila: Da outra vez, despediram 14 músicos sem chances de concurso, no início das férias orquestrais.
Dessa vez, comunicaram a orquestra sobre um concurso, também no início das férias orquestrais.
A diferença é que agora a orquestra reagiu, até porque isso afetou todos os músicos.
Infelizmente, ainda não houve uma união da classe, mas o movimento foi um marco na história da orquestra.
Para que fazer um concurso sem objetivos de mudança de nível e sem clareza de objetivos, se todos os músicos ingressaram na orquestra mediante concurso?
Blog: Voila, conte-nos como foram os seus primeiros contatos significativos com o contrabaixo.
Voila: Minhas lembranças mais remotas são dos contrabaixistas tocando em pé nas orquestras de câmara, e eu sentindo pena deles, sem entender o porquê da “discriminação”.
O primeiro contato mais nítido que consigo me lembrar, foi assistindo a peça “Encadeamentos”, de Raul do Valle, com o Quinteto de Contrabaixos de Campinas, em 1980 e alguma coisa. Essa obra tinha também elementos cênicos e ver cinco contrabaixos bem graves, girando no palco, com jogo de luz em cima deles, foi algo bem marcante na minha vida.
O segundo contato marcante foi assistindo uma aula de contrabaixo do Sandrino Santoro, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando ele ainda era professor lá.
O Sandrino nesse dia estava eloqüente e muito eufórico com o contrabaixo e a aula que ele deu para os alunos foi maravilhosa. Apaixonei-me pelo contrabaixo e decidi ser contrabaixista a partir desse dia.
Quando telefonei para ele para comunicar a minha decisão, ele disse: “Contrabaixo? Que nada! Na semana que vem você muda pro violoncelo!”. Felizmente, como vidente, o Sandrino é um ótimo contrabaixista!
Eu também não posso deixar de mencionar as minhas primeiras aulas de contrabaixo.
Como eu não tinha experiência com instrumentos de cordas, perceber que a mão esquerda faz um movimento totalmente diferente da mão direita foi algo muito instigante. Vou fazer uma confissão bastante ridícula, mas vocês acreditam que eu achava que, ao escorregar numa mesma corda a mão esquerda da metade do braço do contrabaixo para trás, poderia chegar a uma nota mais grave do que a corda solta dessa mesma corda? (risos)
Blog: Você é baixinha. Isso foi um empecilho, uma limitação para você tocar o contrabaixo?
Voila: Meu primeiro mês de aulas foi sem espelho, porque na sala de aula não tinha um. A primeira vez que me vi frente a frente ao espelho com o contrabaixo não foi um choque. Pensei: “ele é grande, mas não tem nada de anormal nisso.”
Quando carrego um contrabaixo na rua, o máximo que pode acontecer é pensarem que o instrumento está andando sozinho, ou que a formiga está carregando o elefante.
Só ficaria um pouquinho mais feliz se tivesse dois dedos a mais de comprimento… do braço, para alcançar todas as notas agudas sem precisar ficar pendurada no instrumento.
Blog: E o fato de ser uma mulher contrabaixista? Você sofreu algum tipo de preconceito?
Voila: Penso que uma mulher resolver ser contrabaixista ainda pode ser encarado como uma mudança de costumes porque, mesmo isso sendo normal para as contrabaixistas, a quantidade de homens contrabaixistas é bem maior.
Na época que comecei a estudar contrabaixo, não havia mulher contrabaixista no Rio. Depois vieram, de Brasília, a Valéria Guimarães e a Zoraima Aleinfel e, de Minas, a Sônia Zanon. Todas já tocavam contrabaixo quando chegaram ao Rio. Por essa época e também antes de mim, outras contrabaixistas despontavam em outros estados do Brasil: Ana Valéria Poles, Gê Cortes, Ângela Bianchi, Maria Helena Salomão, Sônia Ray, Valerie Albright, Miranda Bartira, Ana Maria de Campinas, Renate, entre muitas outras.
Hoje em dia já há no Rio e em vários estados do Brasil muitas mulheres contrabaixistas, altas e baixinhas, gordinhas e magrinhas, etc, numa leva talentosíssima de jovens contrabaixistas como Larissa Coutrin, Mayra Pedrosa, Natália Terra, Lise Bastos, Manuela Freitas, entre muitas outras.
Penso que ser mulher não faz diferença nenhuma na hora de tocar contrabaixo, porque o mais importante para se tocar bem contrabaixo não é o sexo ou a opção sexual do contrabaixista.
Nunca sofri preconceito direto por ser uma mulher contrabaixista, mas sei que alguns pouquíssimos colegas ficaram com o pé atrás.
Para mim, o cúmulo do preconceito ficou registrado num elogio meio às avessas: um colega contrabaixista me contou que quando perguntaram para ele sobre a competência das mulheres contrabaixistas e alguém citou o meu nome, outro alguém disse: “A Voila? Ela toca que nem homem!” (risos)
Para ser contrabaixista não existem problemas quanto ao sexo, a cor, idade, tamanho ou classe social.
A idade é um fator limitante sim, mas não impeditivo.
E, quanto ao tamanho, existem vários modelos e tamanhos de contrabaixo e até contrabaixo para crianças. Se uma criança consegue estudar, por que um adulto não?
A classe social pode dificultar alguns acessos ao instrumento, mas existem muitos contrabaixistas que vieram de classes sociais menos favorecidas e nem por isso deixaram de ser contrabaixistas.
O mais importante para ser contrabaixista é a disposição e a garra para estudar, a capacidade de arranjar tempo para isso e de dividir esse tempo de forma útil, a flexibilidade para entender que a técnica, a interpretação musical e a personalidade do músico são baseadas em regras que podem ser mutáveis e que, tanto as regras quanto as mudanças, podem ser responsáveis por grandes saltos no instrumento. Esses saltos são muito mais importantes que os saltos altos, e são unissex!
E para se manter contrabaixista, o mais importante é ser humilde. Já vi muito contrabaixista cair do elefante…
Blog: Como você encara os colegas e as colegas contrabaixistas de um modo geral?
Voila: Encaro a todos como colegas e os respeito como colegas e como contrabaixistas, mas acho a classe de contrabaixistas muito desunida, no que diz respeito a assistir os colegas, a interagir com os colegas, a movimentar o ambiente contrabaixístico.
Sempre gostei muito de “muvuca” contrabaixística, de movimento, porque acho o meio muito parado.
Há alguns anos, organizei diversas masterclasses com grandes e talentosíssimos contrabaixistas, num projeto que nomeei de “Fala Baixo”.
Nunca ganhei nada financeiramente falando com isso e nunca quis, mas ganhei muita aporrinhação. O dinheiro da “entrada” era repassado integralmente para o contrabaixista convidado, mas eu passava dias atrás dos colegas contrabaixistas, que diziam que iam e na hora não iam, muitas das vezes para ficar em casa lagartixando na piscina, para depois ainda alegarem que haviam “se esquecido” do evento, como se houvesse um evento trimestral e esquecível desses toda semana.
Por uma merreca, era possível assistir uma masterclass do colega contrabaixista, ouvi-lo tocar e ainda conversar com ele por uma hora, no mínimo. Muitas desses eventos tiveram até quatro horas de duração
A freqüência média nas masterclasses era de 15 contrabaixistas, exceção feita à do contrabaixista alemão Gottfried Engels, em que foram 30, e à do contrabaixista russo Eugene Levinson, em que foram uns 45, mas acabei me cansando de levar esse projeto à frente.
Sempre achei que, tanto aqui no Rio quanto em cada estado, deveria haver uma associação local de contrabaixistas, com encontros mensais que poderiam ser feitos até na casa de alguém, com apresentações musicais, lanches, debates, etc, mas essa realidade está bem longe de acontecer.
No fim das contas, de um modo geral, parece que os contrabaixistas profissionais não têm interesse em trocar experiências contrabaixísticas com outros colegas, porque não têm tempo para isso. Interessante é que têm tempo para trocar hobbies…
E os estudantes de contrabaixo, de um modo geral, parecem não ter interesse em assistir eventos contrabaixísticos por achar que aprendem muito mais estudando, e que estariam perdendo tempo de estudo ao abrirem mão de umas poucas horas desse estudo para assistir masterclasses. Infelizmente, esses contrabaixistas não conseguem perceber o tempo de estudo que deixaram de ganhar não indo…
Nem mesmo os raríssimos recitais de contrabaixo que acontecem aqui no Rio contam com a presença significativa de contrabaixistas… Se aparecerem cinco contrabaixistas profissionais, por exemplo, o pobre contrabaixista recitalista já pode se sentir um privilegiado pelos Deuses Contrabaixistas, realizado pelas horas e horas de estudo gastas no Gradus e Parnassum.
Minhas maiores elucubrações contrabaixísticas sempre foram pós-masterclasses e pós-recitais, quando ficava pensando em como soava o vibrato daquele contrabaixista, no fraseado do outro e no tipo de som daquele outro contrabaixista.
Se os contrabaixistas fossem mais unidos, haveria mais descobertas, mais trocas e a vida contrabaixística seria bem mais interessante e menos monótona.
Blog: No episódio OSB, qual foi a posição dos colegas contrabaixistas na sua demissão e na demissão do contrabaixista Tarcísio José da Silva?
Voila: A Associação Brasileira de Contrabaixistas (ABC), através da sua presidente, a contrabaixista Sônia Ray, fez um manifesto que foi enviado para a sede da OSB. Esse manifesto foi assinado basicamente por contrabaixistas. Não me lembro quantas assinaturas foram. Foram poucas como um todo, mas se pensarmos na quantidade de contrabaixistas que assinaram, foi muito, embora não tenha sido representativo como um todo. Fiquei feliz com o manifesto, porque nessas horas o apoio faz toda uma diferença para quem está na situação, mesmo que ela não mude.
Eu não posso deixar de mencionar e agradecer o apoio da presidente da ABC e dos colegas contrabaixistas e não-contrabaixistas que assinaram o manifesto, assim como não posso deixar de mencionar e agradecer o apoio dos colegas contrabaixistas que escreveram no fórum contrabaixobrasil, como Antonio Arzolla (RJ), Sonia Ray (GO), Gael Lhomeau (RJ), Walter Schinke (RGS), Ricardo Vasconcellos (BSB), Maurício Souza (RGS), entre outros colegas, e agradecer também o apoio dos contrabaixistas Andrea Spada, Bruno Collyer e Valéria Guimarães. Todos os contrabaixistas da Orquestra Petrobrás Sinfônica (Jorge Soares, Ricardo Cândido, Saulo Bezerra, Gael Lhomeau, Tony Botelho e Sônia Zanon), foram sensacionais comigo e com o Tarcísio! Fiquei muito emocionada com o carinho contrabaixístico de todos eles e também com o carinho dos colegas não-contrabaixistas, como o Ricardo Resende, a fagotista Ariane Petri, o Mariano Gonçalves e a violinista Sônia Katz, entre outros.
Meus pais, minha família, meu irmão com a família dele e minha analista, aliados à minha total falta de experiência em qualquer outra coisa que não fosse tocar contrabaixo, foram essenciais para que eu não desistisse de vez de ser contrabaixista.
Blog: Você tem músicos na família?
Voila: Minha avó materna e minhas tias-avós eram musicistas amadoras e havia saraus na casa dos meus bisavôs, onde cada uma delas tocava um instrumento: violino, piano, alaúde… Não cheguei a conhecer essas performances, só as histórias de família mesmo.
Minha mãe sempre teve o lado artístico bem presente como artesã amadora, versátil e sazonal. Ora era decapê, ora caixas decoradas, ora colchas, etc. Ela chegou a aprender um pouco de piano, mas eu também só a vi tocar o bife com batata. Além de afinadíssima, ela tem uma voz bem aguda e muito bonita, mas canta pouco, talvez por herança da minha avó que, mesmo tendo sido musicista, achava que cantar era para ser feito bem baixinho, para “ninguém ouvir”.
O lado artístico do meu pai era neto de um pintor famoso e irmão de uma escritora também famosa, todos de Sergipe, mas meu avô não o deixou ser músico. Meu pai queria ser violonista, mas para meu avô música era “coisa de vagabundo”, e meu pai se tornou um músico interior: assovia bem, canta bem, batuca bem, tem um ritmo incrível, mas não toca nada. Meu pai sempre escreveu muito bem e sempre foi um ótimo apreciador e observador das artes, mas com o avançar da idade, ele fez as pazes com a arte que ele sempre carregou e sufocou dentro de si, e passou a pintar.
Todo o meu repertório e o pouco de música popular que corre pelas minhas veias devo a ele e à minha mãe, que sempre ouviram muitos discos e, vez por outra, ainda dançavam na sala. E bem.
Acho que fizemos todos uma troca nessa vida: meus pais são músicos “frustrados” e eu sou uma dançarina frustrada. (risos)
Mas como dançarina frustrada sou uma contrabaixista feliz com meus pais, que sempre me apoiaram na música e fora dela, e isso não é pouco. Tive muitos alunos que desistiram do contrabaixo por falta de apoio da família, que os queria médicos e advogados… O maior inimigo do futuro contrabaixista, depois dele mesmo, é a família dele. E se o infeliz ainda tiver um maestro na família, aí a desgraça é completa. (risos)
Blog: Qual a relação dos seus filhos com o contrabaixo e a Música?
Voila: Meus filhos sempre conviveram com música em casa, porque o pai deles é um excelente violonista de música popular e um cantor de voz lindíssima.
Quando eles eram pequenos, sentavam no meu colo para “tocá tabaixo” e, vez por outra ainda fazem isso.
Eles também gostam de me ouvir cantar canções folclóricas, me pedem para tocar contrabaixo para eles dormirem e ainda se convidam para estudar comigo. (risos)
Para a peça de teatro que estou tocando, passei a estudar com os dedos (pizzicato) para ter calos, já que quase não faço uso do arco nela. Eu estava estudando no quarto, quando meu filho chegou:
“- Mãe, eu não to ouvindo nada do que você tá tocando lá na sala!
– Sim, querido, é porque a mamãe está tocando só pizzicato, sem o arco.
Ele sai e volta com o arco:
– Trouxe para você tocar!”
Penso que um esporte e uma atividade artística são essenciais na formação de uma criança, porque mesclam o lado lúdico, a criatividade, a concentração, a socialização e a disciplina, e ampliam o conhecimento de si mesmo e o respeito ao próximo, além de facilitarem o aprendizado escolar e as relações familiares.
Meus filhos podem não seguir a carreira musical ou artística, por opção pessoal, mas sempre serão artistas especiais por dentro e filhos de artistas por fora.
Esse lado artístico é natural neles e lutar contra isso será algo muito doloroso. Espero que eles consigam reservar um espaço para a arte na vida deles, mesmo que não seja profissionalmente.
Quando se sufoca a arte que há dentro da gente, um dia ela sempre eclode, nem que seja nos momentos mais grisalhos da vida.
Blog: Por que você escolheu o contrabaixo?
Voila: Não sei. Já me fiz essa pergunta muitas vezes e nunca achei uma resposta convincente. Prefiro pensar que era um caminho para ser trilhado.
Freud deve explicar o porquê de eu escolher um instrumento que nas minhas lembranças mais remotas eu sentia pena, que é tão maior do que eu, que quando eu carrego quase me achata, e que quando toco consigo me esconder atrás dele. Se correr o bicho me pega, se tocar o bicho, ele some comigo.
Blog: Qual a emoção que o contrabaixo te traz?
Voila: O contrabaixo me traz uma mistura de emoções que começa quando consigo entender o que sinto e transmitir esse sentimento no instrumento para mim mesma.
Penso que o contrabaixo é um instrumento de som muito grave e que se não conseguimos torná-lo interessante, ele dá sono, tanto em quem o escuta como em quem o toca.
Claro que é quase impossível tocar tudo absolutamente expressivo, até porque na maioria das vezes somos responsáveis pelo chão orquestral, pela base da harmonia, e é nesse tapete que passarão as estrelas com seus solos e, algumas com estrelismos também.
Mesmo assim, temos que estar preparados para os momentos expressivos e essa disposição precisa sair de nós mesmos para se encontrar com os nossos colegas e chegar aos ouvidos do público.
Já assisti grandes músicos tocarem pessoalmente: Isaac Stern, Nelson Freire, Mstislav Rostropovich, Paul Tortelier, Antonio Menezes, Gary Karr e muitos outros.
Posso dizer que a emoção de ouvi-los é quase que uma oração, um respeito, um ritual. Por mais estranho que possa parecer, tocar com esses músicos e/ou ouvi-los tocar é um momento de silêncio interno meu.
Quando a música me diz muito ou tudo, a emoção é silenciosa.
Essa mesma emoção também sinto ao tocar o Pássaro de Fogo, de Stravinsky, que foi a primeira peça que toquei ao entrar para a OSB. Durante os 19 anos em que fiquei nela, sempre me emocionei com essa obra, a despeito de, no naipe de contrabaixo, o Pássaro de Fogo passar a ser chamado de urubu chamuscado nos ensaios, e render boas risadas com isso.
Blog: Quais foram as suas maiores emoções contrabaixísticas pessoais?
Voila: Tive alguns momentos muito emocionantes e chorei por todos eles…
As primeiras emoções foram por causa de pessoas que choraram ao assistir os meus dois solos de contrabaixo com a Orquestra Sinfônica da UFRJ, quando toquei os concertos de Cimador e do Dragonetti, respectivamente, e o meu recital de formatura na UFRJ. As primeiras lágrimas contrabaixísticas a gente nunca esquece…
Em 2008, quando fui convidada pela contrabaixista Sônia Ray para dar uma palestra no VII Encontro Internacional de Contrabaixistas da Associação Brasileira de Contrabaixistas, ouvi dela as seguintes palavras:
“- Voila, eu te vi tocando a Canção e Dança, do Radamés Gnatalli, para o Gary Karr, naquele primeiro Encontro Internacional de Contrabaixistas, numa época em que ninguém tocava essa peça. Você se lembra do que o Gary te disse?
– Não…
– Que você era uma “natural performer”, Voila! Sei que você está passando por momentos difíceis, mas o seu talento é seu e ninguém pode tirá-lo de você!”
Em 2007, fiz um curso com o grande contrabaixista Tibô Delor. Quando abri o encarte do CD dele que comprei, vi a singela e delicada dedicatória escrita com caneta azul: “Para Voila, que toca tão bonito…”
Em 2009, após a minha aprovação num concurso para orquestra, ouvi dois contrabaixistas membros da banca examinadora me dizerem que a minha prova havia “surpreendido a banca”, não porque me faltasse talento, mas porque eles jamais poderiam imaginar que eu pudesse fazer uma prova daquele nível, com a vida atravancada que eu levava.
Blog: Quais foram as suas influências?
Voila: Sandrino Santoro, um grande mestre italiano, naturalizado brasileiro, e um contrabaixista apaixonado pelo contrabaixo, um entusiasta, dono de um som lindo e das mãos contrabaixísticas mais bonitas que já vi.
Tive a grande honra de ter o Sandrino como meu primeiro professor de contrabaixo. Com ele aprendi muitas coisas, entre elas, que às vezes é preciso chegar ao extremo oposto do problema técnico, para se alcançar um meio termo. Por exemplo: para um vibrato feio, passar algum tempo sem fazer vibrato, para depois recomeçar o estudo com o vibrato bem lento e com ritmo, ajuda a “desconstruir” o problema, a entender melhor uma nova concepção de vibrato e a alcançar um vibrato mais “digerível”.
Uma mão direita muito caída para a direita, por exemplo, pode melhorar depois de se passar algum tempo “forçando” a mão para a esquerda. Cansa tanto, que terminamos por conseguir deixá-la no meio. (risos)
Outra coisa que aprendi com ele, foi que parar um pouco a técnica para pensar em música é algo muito saudável, mesmo para quem é iniciante no instrumento.
No mais, tem um dia no ano em que acho a minha mão direita parecida com a dele – embora já tenha ouvido de uma grande violinista brasileira que a minha mão direita é mão de violinista- e passo os outros 364 dias do ano ou tentando descobrir o segredo das mãos dele ou maldizendo as minhas mãos magras e feiosas, com veias azuis saltitantes, até me conformar com o fato de que somos o que somos e que não há cirurgia plástica para algumas coisas;
Antonio Arzolla, um grande mestre brasileiro e um contrabaixista especial, dono de um vibrato lindo, de um som lindo, de uma interpretação apurada e de uma precisão impressionante.
Tive a também grande honra de ter o Arzolla como meu segundo professor de contrabaixo. Com ele, aprendi que nada é feito ao acaso no contrabaixo. Se você achou que aquele resultado musical foi ao acaso, repita e tente entender o que aconteceu.
Com ele também aprendi que o contrabaixo pode ser um instrumento interessantíssimo, que não fica nada a dever a muitos outros instrumentos.
O Arzolla dizia que se eu estudasse mais, conseguiria tocar melhor do que ele. Nunca consegui comprovar essa suposição, mas devo a ele grande parte do que sei sobre interpretação, variantes de timbres e climas na música.
Ele finaliza todas as minhas dúvidas sobre vibrato, porque sei que existe um exemplo, um modelo a seguir. Aí passo a minha vida contrabaixística tentando entender como ele chegou a um vibrato tão característico e bonito. Ainda não cheguei a uma conclusão sobre isso.
Uma vez eu estava sentada no último andar de uma sala de concerto, quando ouvi um violoncelista tocando. Primeiro pensei: “Nossa, que som lindo!”. Logo depois, resolvi prestar mais atenção à execução e pensei: “Engraçado, esse violoncelista tem o vibrato do Arzolla!”. Aí olhei para baixo e vi que era ele mesmo, brincando de tocar violoncelo…
Existem músicos que carregam o talento e a sua personalidade para qualquer instrumento. O Arzolla é um deles, pois também toca muitíssimo bem piano e órgão.
Quando fui obrigada a fazer dois períodos de piano na universidade, a professora dizia que o meu toque era muito bonito para quem não sabia nada de piano. Tenho a memória auditiva do som que o Arzolla tirava ao piano e acho que isso fazia toda a diferença na hora das minhas aulas de piano. Já que eu não ia tocar piano mesmo, pelo menos tirar um som mais agradável me dava um alento, uma disposição para aguentar as aulas.
Wolfgang Guttler, um grande mestre romeno, que reside na Alemanha, e um contrabaixista dono de um sonzão incrível, com um talento natural para fazer de qualquer caixote de bacalhau um contrabaixo de primeira linha, e que interpretação!
O Guttler foi o contrabaixista que dividiu as minhas fases contrabaixísticas em antes e depois dele.
Com ele aprendi que a disciplina é essencial na hora de estudar e que a concentração é um dos grandes trunfos de quem quer ser contrabaixista.
Ele é um contrabaixista com um excelente senso de humor, e a aula que ele deu para um contrabaixista, de duas horas seguidas, sobre afinação, num sábado após um tremendo rodízio de churrasco, em que ele comeu assombrosamente, foi uma prova da grande concentração dele, e uma tremenda provação para nós, mortais contrabaixistas, que assistimos a aula completamente estarrecidos e empanturrados.
Hans Roelofsen, um grande mestre holandês, e um contrabaixista refinadíssimo, muito observador e inteligente, dono de uma interpretação linda, especialmente de música antiga.
Com ele, aprendi a respeitar os meus limites físicos, pois tive aulas com ele numa época pessoal difícil e de muitas tendinites nos cotovelos.
Nunca me preocupei em aprender a usar o pesado arco que ele usa, nem mesmo a usar constantemente o dedilhado 1-2-3-4 como ele usa – e ele também nunca tentou me ensinar isso-, porque prefiro o som do arco de peso normal e porque não tenho a mão e os dedos compridíssimos que ele tem. Preferi me ater à interpretação e aprendi muito sobre acabamentos, estilos e timbres com ele.
Aprendi também muito com a dedicação quase obsessiva dele em fazer com que determinado tipo de som fosse tirado, em entender o porquê de determinado problema surgir e com a agilidade em que pensava numa solução.
Mas uma das coisas que mais me impressionou nele foi a capacidade dele de entender o momento emocional do aluno somente através da música e o respeito que ele tinha por esse momento emocional do aluno, fazendo-o esquecer as coisas ruins para pensar nas coisas boas que o contrabaixo pode transmitir e proporcionar.
As aulas dele duravam o dia inteiro, e ele parecia que só pensava em contrabaixo mas, surpreendentemente, ele tinha uma noção completa e silenciosa do que estava acontecendo à sua volta. Para ele, a música não é só uma arte, uma ciência ou uma linguagem; é um idioma, um sexto sentido.
Esses são os contrabaixistas com quem passei mais tempo, mas assisti recitais e masterclasses de muitos outros, e cada um me impressionou a seu jeito: Franco Petracchi, Eugene Levinson, Miroslav Gajdos, Massimo Giorgi, David Murray, Edwin Barker, Jean-Marc Rollez, Ricardo Cândido, Tibô Delor, Tony Botelho, Thomas Martin, Thierry Barbé, Diana Gannett, Kristin Korb, Jeff Bradetich, entre muitos outros.
Blog: Recentemente, você começou a tocar numa peça de teatro. Como está sendo isso?
Voila: Esse está sendo um trabalho muito diferente do que costumo fazer, porque sou uma contrabaixista de música erudita, arco e orquestra. Tenho experiência como camerista e como solista, mas atuo há mais tempo como musicista de orquestra e professora.
A peça de teatro apareceu numa época de poucas opções fora de orquestra, já que os cachês escassearam bastante nos últimos anos aqui no Rio, e graças à indicação da Edna e do Paulo Gomes, do Ateliê de Luteria Paulo Gomes.
Felizmente, não sou a única instrumentista que teve a chance de recorrer a outras opções, como o teatro ou musicais.
Recentemente, soube de um grande contrabaixista brasileiro que também partiu para essa nova linha quando a situação financeira apertou, e me senti mais segura para falar dessa nova experiência depois disso.
Como a maioria dos músicos de orquestra, sou viciada em partituras e quase surtei quando me chamaram para esse trabalho sem partituras e sem cifras, com um DVD editado e um prazo limitadíssimo para a estréia aqui no Rio. A peça vinha de uma boa temporada em São Paulo e, para resumir, tive um ensaio com o elenco e no dia seguinte foi a estréia. E o pior: tocar tudo de cor! Mas sobrevivi e, passado o susto, passei a me divertir com a peça também.
As músicas foram compostas especialmente para a peça. A formação é um trio de mulheres musicistas (teclado, contrabaixo e bateria), e quase tudo é tocado com os dedos e não com o arco. Para isso, criei meus calos sem bolhas, com muito cuidado.
Continuo sendo uma contrabaixista de erudito, mas agora engano tocando música latina, samba, funk e jazz (risos) e, de quebra, ainda faço algumas caretas em cena, já que há uma boa interação da banda com os atores.
A música popular me permitiu uma descontração física que os clichês eruditos não permitem demonstrar. Na peça posso sorrir, dar piscadelas para as musicistas, tocar com o pescoço virado para acompanhar a cena, coisas improváveis de acontecerem num concerto tradicional. Isso sem contar a chance de ver o público cara a cara de três a quatro vezes por semana, coisa que sempre fiz com a cara enfiada na partitura.
Ah, e mais a chance de tocar com o contrabaixo amplificado e com caixa de retorno, algo muito comum para quem não toca só o erudito, mas quase um bicho de sete cabeças para a criatura acústica aqui.
O repertório é bem simples e a linguagem para quem toca esse estilo de música não tem mistério, mas para quem, como eu, nunca tocou isso na vida, tudo está sendo uma grande escola.
Blog: Como surgiu a idéia das “Orientações contrabaixísticas”?
Voila: A idéia surgiu quando a Luana contrabaixista de São Paulo doou para mim a comunidade “Mulheres no contrabaixo”, no Orkut.
Durante os quase dois anos em que fiquei com a comunidade, passei a receber muitas mensagens com perguntas sobre o que fazer, como tocar contrabaixo, etc, e vi que muitos contrabaixistas não tinham acesso a nenhuma informação sobre o contrabaixo, seja porque moravam muito longe, seja porque não tinham professor.
Tive uma boa formação contrabaixística e acho que posso passar as lições que me foram transmitidas por professores e as que eu “compilei” ao longo da minha vida contrabaixística para os colegas que não têm essa oportunidade. Quem lucra com isso é o instrumento.
Depois, passei a pensar que a carência de material sobre o contrabaixo em Português é enorme e que ninguém é dono da verdade, ou seja, que eu também poderia escrever para colegas que têm formação e professores, porque isso é uma troca de experiências.
Vários contrabaixistas que estiveram no Brasil se surpreenderam com o nível técnico e musical dos contrabaixistas brasileiros com quem tiveram contato. Precisamos lutar pela melhoria da classe.
Estamos no século XXI. Não podemos deixar o contrabaixo ser tocado e/ou aprendido de qualquer jeito, sem fazer nada por isso.
Estou tentando fazer a minha parte escrevendo. Muitos estão tentando fazer isso dando aulas, outros tentam tocando, outros estão gravando CDs. O que importa é que cada um ache o seu jeito de melhorar o nível dos contrabaixistas e não só a si mesmo, embora a busca pela melhoria técnica e interpretativa seja constante na vida de cada músico.
Blog: Quais são as suas outras artes?
Voila: Adoro escrever textos, cozinhar e cantar!
Tenho um monólogo, um conto infantil e uma peça teatral para adolescentes e adultos. Todas essas obras têm o contrabaixo como personagem principal. Espero um dia ver ao menos uma dessas peças sendo encenada.
Como contrabaixista dublê de cantora fiz três shows, mas precisei parar por falta de grana para investir na carreira de cantora, que requer preparação vocal, ensaios, etc. Meu pai é ateu, mas diz que minha voz é um dom divino. Suspeito isso, não é? Mas tenho uma grande extensão vocal: mais de três oitavas e sou um soprano bem agudo.
Quando dei aulas de teoria musical num morro do Rio, para uma turma de 20 adolescentes entre 12 e 17 anos, precisei mais da minha voz do que de qualquer outro recurso. Quando a bagunça estava insuportável, eu perguntava se a turma gostaria de me ouvir cantar na terceira oitava. Como o teto da sala de aula era baixo, os meus agudos ficavam ensurdecedores. Aí, todos ficavam quietinhos, para não precisarem ouvir a minha performance esganiçada especialmente para a ocasião, e eu continuava a minha aula tranquilamente. Professor tem que ter pulso firme e voz firme, senão já era.
Meu contato com a culinária é bem antigo. Minha família era cobaia das minhas experiências desde que eu tinha 11 anos. Meu pai ainda tem na memória a lembrança do dia infeliz em que criei um arroz com tanjal. Há pouco tempo, vi que um chef famoso criou um arroz com tanjal também. Como quase todos os precursores de coisas novas, fui uma incompreendida na época (risos).
Já fiz muitos doces e salgados para fora. Minha leitura culinária é melhor que a leitura musical. (risos) Leio uma receita e sei se é boa ou ruim e, pelas proporções, vejo se vai dar certo ou não, se vai ficar doce demais ou não, se posso fazer alterações para deixar o resultado mais macio, mais crocante, etc.
Meu colega contrabaixista e também aficionado por culinária, Saulo Bezerra, um dia me disse que se eu abrisse um restaurante ficaria rica. Ele tem uns pepinos agridoces sensacionais e, vez por outra, trocamos pelos meus biscoitos de aveia, mas o meu calote é sempre maior do que a troca.
A receita original desses biscoitos é do meu avô, não da minha avó. O Saulo já tentou várias vezes fazê-los, mas ainda não descobriu o segredo desses biscoitos, porque essa é a única receita que não passo (risos).
Blog: Você também tem segredos no contrabaixo que não passa adiante?
Voila: Ser contrabaixista é ser uma pessoa multifuncional, e todas as funções necessárias para se tocar são misturadas entre si: peso do corpo, velocidade do arco ou das mãos, o ponto onde se tira o som, a qualidade do instrumento e do arco, facilidade para ler ou para tirar de ouvido a música, capacidade para aplicar o que foi aprendido em outras situações, a busca constante pela exteriorização do som interno, do timbre musical, que cada instrumentista tem dentro de si, a quantidade de adrenalina e de emoção do momento da execução, etc.
Por causa disso, sempre vai haver quem considere haver segredos, mas na realidade não são segredos: são combinações matemáticas e físicas ainda não compreendidas ou não desenvolvidas, que dão a singularidade a cada músico e que eternizam em nós muitas das performances musicais…
Blog: Você já pensou em ser compositora?
Voila: Não. Compus duas músicas na vida: uma aos 14 anos, para um festival de música da minha escola, e a outra para espairecer um momento difícil.
Prefiro gastar minha criatividade nas interpretações. Interpretar não deixa de ser uma criação, só que de nuances.
Atualmente, fico feliz por ter feito o solo de contrabaixo que tem na peça de teatro, a partir das cifras que me foram dadas.
Os compositores da trilha, Elaine Giacomelli e Eduardo Contrera, me deram liberdade para fazer o solo a meu modo, diferente do que a contrabaixista paulista Clara Bastos fazia e, felizmente, também gostaram do resultado carioca.
Blog: Como é o seu trabalho de interpretação das músicas?
Voila: Penso que toda música tem algo a dizer ou a ser transmitido e que, como músicos, somos responsáveis por essas mensagens e intermediários das sensações que elas passam.
Um mesmo trecho musical pode ser transmitido e tocado de diversas formas.
Se tocado de forma suave e entrecortado de pausas, pode dar a sensação de cautela, medo, etc;
Se tocado de forma suave e com pouca expressão, pode transmitir introspecção, meditação, etc;
Se tocado de forma suave e com mais expressão, pode sugerir religiosidade ou um pedido, etc;
Se tocado de tocado cheio de crescendos e decrescendos, pode sugerir algo mais caricato, ou mais expressivo, ou mais ansioso, etc;
Se tocado mais forte e sem expressão, pode sugerir uma ordem, uma dor mais dilacerante, etc;
Se tocado mais forte e com muita expressão, pode transmitir uma paixão, um grande amor, etc.
Penso nas frases musicais como uma história, com início, desenvolvimento, clímax e fim.
A pessoa pensa, fala, fica na dúvida, reafirma o que falou, parte para a ação, faz, fica feliz ou não com o resultado e repensa, até chegar a um final feliz, triste ou esperançoso, etc.
Mesmo o contrabaixo não sendo uma voz ou um violino, ainda assim é possível deixá-lo expressivo dentro dos recursos que ele oferece.
Para isso, é necessário primeiro ter a idéia e a estrutura do que vai ser feito na cabeça, porque o que não está na sua cabeça não vai para os seus dedos e menos ainda para o coração dos outros.
Depois, é preciso usar os recursos de expressão: vibrato e as variantes de pressão, velocidade e ponto de contato do arco, que fazem as dinâmicas acontecerem ou não no contrabaixo. Essas dinâmicas, que vão do fraco ao forte, do doce ao agressivo, do sibilante ao incisivo, é que fazem toda expressão da música.
Blog: E quais são os seus planos e projetos?
Voila: Sou uma verdadeira arquiteta, especialista em projetos de gaveta. (risos)
Além das peças teatrais, do extinto Fala Baixo e dos projetos de shows, tenho planos de continuar um projeto de entrevistas contrabaixísticas, que parei por falta de quórum dos membros da comunidade de contrabaixo do Orkut, talvez agora num blog.
Tenho também o projeto de um encontro de contrabaixistas aqui no Rio que, na época, foi aprovado com muito entusiasmo pelo então decano de uma grande universidade, mas que eu tive que parar na gravidez de alto risco do meu filho. Ele nasceu prematuro de sete meses e o projeto não nasceu até hoje. (risos)
No mais, minhas atenções agora estão voltadas para o término do meu livro sobre orientações contrabaixísticas, que terá um DVD de aulas iniciais de contrabaixo, além de um pequeno compêndio de exercícios técnicos.
Blog: Como você se vê como professora de contrabaixo?
Voila: Dou aulas de contrabaixo para os níveis básico e técnico em uma escola de música do governo.
Os alunos que procuram a escola, de um modo geral, têm um sonho de serem músicos e uma realidade sócio-econômica que faz de tudo para destituí-los desse sonho.
Esse tipo de público é bem diferente de quem entra para cursar contrabaixo numa universidade, porque depois do teste de habilidade específica no instrumento e do estresse do vestibular, o aluno realmente já decidiu o que quer ser e fazer.
Antes disso, normalmente o aluno ainda está testando as opções para decidir se vai mesmo ser contrabaixista depois, e é aí que eu me encontro.
Já fui uma professora mais dedicada, com vários projetinhos em sala de aula e fora dela, mas com a chegada dos meus filhos e da idade, me tornei uma professora mais seletiva. Não tenho mais paciência com aluno que não quer estudar. Já tive muita. Tive um aluno que passou dois longos anos sem ter um contrabaixo em casa e sem estudar no da escola um diazinho sequer. Um dia, cansei e deixei o bonitinho estudando na hora da aula e fui tomar um café. Foi a única vez que ele estudou e também a última que apareceu na escola.
Sou uma pessoa muito crítica e observadora. Se por um lado isso é bom, também é perigoso porque pode desestimular os alunos, já que a proporção entre coisas a consertar é sempre bem maior que a de coisas a serem mantidas.
Felizmente, a teoria da evolução do Darwin também se aplica à sala de aula: a seleção natural tarda, mas só continuam contrabaixistas aqueles que têm condições de se desenvolver.
Blog: Como você vê o seu futuro contrabaixístico?
Voila: O futuro é uma coisa que o músico não costuma pensar, mas que deveria ser encarado de forma mais contundente e responsável.
Assim como a medicina preventiva deveria ser levada mais a sério, assim como todas as empresas deveriam preparar previamente os seus funcionários para a chegada da aposentadoria, os músicos deveriam se preparar e/ou serem preparados para a aposentadoria, ou mesmo para a hora de parar profissionalmente de tocar.
Tenho um colega violista que um dia me disse que estava estudando Direito, porque ele não conseguiria ser músico de orquestra a vida inteira, já que a velhice chegaria e os trabalhos em orquestras escasseariam.
Sim, não se fala nisso, mas há uma “diferenciação etária” na hora de ser chamado para cachês. Há preferência por jovens músicos e por músicos maduros, mas não por músicos da terceira idade.
Nas orquestras, muitas das vezes os músicos idosos vão sendo colocados nas últimas estantes até que a aposentadoria ou a morte os leve de vez da orquestra. Se eles saem pouco antes disso ou logo após se aposentarem, dificilmente serão chamados para fazer cachês em orquestras. Quando muito, eles serão chamados para tocar em cerimônias de casamento, trabalho esse que é muito desqualificado, com raras exceções.
A grande maioria dos músicos apresenta algum problema de coluna que se intensifica com a chegada da terceira idade, devido tanto à postura ao instrumento, quanto ao sedentarismo das horas de estudo e/ou trabalho com o instrumento, sem nenhuma prática de atividade física regular.
O contrabaixista precisaria pensar primeiro no seu futuro físico, porque sem exercícios físicos regulares será muito difícil chegar à terceira idade carregando um contrabaixo- e muitas das vezes subindo escadas com ele- que pode pesar entre 11 e 14 quilos.
Depois, seria preciso pensar se há alguma outra solução em que não houvesse tanta necessidade de locomoção com o instrumento. Dar aulas, fazer pequenos reparos em instrumentos, por exemplo, ou mesmo procurar um emprego ou profissão alternativos.
Penso no meu futuro dando aulas e escrevendo sobre o contrabaixo.
Gostaria de dar aulas esporádicas, tipo masterclasses porque, com a idade, a minha paciência para aturar os problemas musicais e contrabaixísticos dos alunos regulares, com certeza, não será mais a mesma.
Blog: Quais os seus dois grandes sonhos?
Voila: Um dos meus grandes sonhos é fazer um blog!
Ah, e eu também gostaria muito de fazer…
…
O despertador toca.
Acordo do sonho sem saber o que mais eu gostaria de fazer.
E agora?… Merda!
Orientacoes Contrabaixisticas by Voila Marques is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas License.