Texto publicado na Revista FCBR
A comunicação oficial do inspetor da orquestra jovem acabou por tirar o meu sono tão logo entrei para a orquestra:
– Dia 20 tem ensaio de naipe dos contrabaixos para a Nona Sinfonia, de Beethoven.
– É assim que vocês matam os que acabam de entrar para a orquestra? Não é a toa que ainda há vagas sobrando…
– A orquestra não mata; os contrabaixos é que adoram se suicidar. Por isso, optamos pelo ensaio de naipe.
– É obrigatório?
– Obrigatório e eliminatório. A rima só conhece quem falta.
Faculdade, ensaio três vezes por semana da Quinta, de Beethoven, e quinze dias para me preparar para o tal do ensaio da Nona… E a bolsa de estudo oferecida pela orquestra, que fica impassível a essa matemática de somar sinfonias…
Meus dias voam, o sono faz modulações no meio da noite, e a insônia insiste em pensar que toda noite de preocupação é noite de balada.
Os ensaios da Quinta na orquestra me deram uma noção do que seria a Nona…
Meu naipe era um tanto quanto difuso e estranho.
Zenilda era a chefe de naipe.
Antipática e pedante, achava que todos os contrabaixistas do mundo lhe deviam alguma espécie de homenagem, mas nem para outro tipo de homenagem ela servia, coitada: feia de doer, daquelas que um travesseiro era pouco para cobrir a cara na hora do vamos ver, e com um corpo que era a tábua mais desbundada que eu já vi. Daria para fazer um contrabaixo, e só.
“Passar horas sentada naqueles banquinhos de madeira devem deixar o traseiro dela anestesiado… Meu Deus, como alguém pode querer tocar contrabaixo na orquestra e esquecer a bunda em casa? Deve ser por isso que ela é assim tão enjoada: carência de bunda!” – pensava eu, enquanto tentava elucidar o mistério que fez a Zenilda ser contrabaixista e o mistério mais misterioso que fazia a Zenilda conseguir ficar sentada naquele banco horrível, tão desbundada que era…
Mas ela se achava a contrabaixista mais contrabaixista do planeta.
“Pelo menos, ela não sofre com a realidade.” – diziam alguns colegas de outros naipes, que não eram obrigados a lidar com o ego da Zenildinha. E que ego!
Desafinada por milímetros, mas suficientemente desafinada para ser percebida como tal, Zenilda entrou para a orquestra jovem sem concurso, por indicação de um velho contrabaixista muito afeito às tábuas da Zenilda, talvez porque ele não pudesse ser tão exigente e eficiente como outrora, ineficiência essa famosa, que as más-línguas diziam se estender dos olhos até as partes bifurcantes.
Zenilda tinha também o dom especial de conseguir tocar uma sinfonia inteira sem perceber que estava dois compassos atrasada ou adiantada.
E a Zenilda das cocadas saia distribuindo patadas nos ensaios: “afina!”, “seu ritmo tá errado!”, enquanto tocava mais forte e tentava impor o seu jeito peculiar de tocar errado achando que estava mais do que certa.
Do lado dela se sentava Zeferino, o concertino, que tinha sido escolhido como tal não por merecimento ou concurso, mas por falta de opção mesmo.
Zeferino era zen. Zen noção e zen condições, e ainda por cima natureba, passava o dia a fumar umas canabis ecológicas, e ia para os ensaios completamente chapado, rindo à toa e mandando beijinhos até para as notas fora da Zenilda, que passavam voando pelo seu nariz.
Diziam na orquestra que o auge da performance do Zeferino aconteceu no dia em que a Zenilda teve uma caganeira de emergência e precisou ser substituída idem num concerto didático importante em que, além das criancinhas de escola, apareceram também o governador do estado e seu séquito de puxa-sacos, logicamente para promover o projeto de inclusão musical firmado entre o governo e a orquestra.
Durante apresentações didáticas é praxe o chefe de naipe mostrar o seu instrumento para o público e tocar alguma coisinha para que o público fique quieto pelo menos nessa parte do concerto, já que depois…
Bem, o Zeferino foi pego de surpresa, pois tava acostumado a ouvir a Zenilda se exibir nessas horas.
Mas a Zenilda tava no vaso. E agora, Zeferino?
Com os olhos vermelhos, mais maconhados do que nunca, ele sorriu para a plateia aquele sorriso bem apatetado e tocou quatro notas longas: sol – ré – lá – mi.
Sim, as cordas soltas do contrabaixo, sem uma notinha presa ou um atirei o pau no gato sequer, porque a mão esquerda dele devia estar num bode daqueles.
A plateia não aplaudiu e ainda ficou esperando o solo, que não apareceu e nem iria aparecer, enquanto o maestro anunciava outro instrumento o mais rápido possível, para evitar burburinhos.
Mesmo assim, depois do episódio ele continuou no cargo de concertino e a orquestra passou a ter uma caixa de primeiros socorros, com direito a muito Floratil, que era guardado sugestivamente junto com remédios para dor de cabeça e uma…rolha de cortiça.
A falta de uma opção que tocasse contrabaixo a contento era grande e o terceiro contrabaixista era o Danúbio, que não era o azul, mas que valsava entre duas faculdades e a orquestra, sem tempo para estudar nem para uma coisa, e menos ainda para duas ou três. Para piorar o quadro, morava lá na rua que partiu…
O Danúbio foi o primeiro contrabaixista concursado da orquestra e passou porque, como a bolsa de estudo era no valor de uma pochete, foi também o único contrabaixista inscrito.
O maestro era o único membro da banca julgadora. “Um é número ímpar” – alegava ele para se justificar, e acabou passando o Danúbio.
Dizem que o maestro era regente de coralzinho qualquer, e que nunca tinha regido uma orquestra.
Ele foi chamado para ganhar dinheiro no projeto da orquestra e não pensou duas vezes em aceitar o convite, assim como não pensou em nada ao aprovar o Danúbio, mesmo porque ele nunca tinha ouvido nada mais feio e cavernoso na vida, mas não podia demonstrar isso reprovando o único candidato de contrabaixo.
Parece que essa foi a primeira vez que ele ouviu um contrabaixo com arco na vida. E, dizem as línguas ferinas, que isso foi um estupro auditivo inesquecível tanto que, nos concursos seguintes, ele delegou a função de banca de contrabaixo ao próprio Danúbio e depois ao próprio naipe.
No primeiro ensaio da orquestra, o Danúbio começou a tocar tudo com os dedos, em pizzicato, para espanto total dos violinistas e violoncelistas de plantão até que, envergonhado, confessou que aquela era a primeira vez que ele tocava com arco na vida.
“Mas, e no concurso?” – perguntaram todos.
Para deleite da galera pasma, ele deu a entender – um tanto quanto constrangido -, que o estupro não fora bem auditivo, mas que ele era jovem, porém maior de idade, e ainda terminou dizendo que cada um cuidasse do seu próprio arco, pois remeter o arco ou retomar o arco era um problema de cada um, e que ele preferia retomar o arco, e pronto.
E o quarto contrabaixista sou eu, Duda, que passei para a orquestra mediante concurso, cuja banca julgadora eram Zenilda, Zeferino e Danúbio. Os três não entravam num acordo. A Zenilda não queria dividir o trono de única contrabaixista da orquestra com mais ninguém, mas o Zeferino e o Danúbio a convenceram de que, com mais gente no naipe, todos poderiam tocar mais suave. Aí, a lei do menor esforço venceu, e passei para a orquestra com todos os meus pum-pum-puns e ronc-roncs.
E chega o dia do ensaio de naipe…
Zenilda aboleta a sua tábua no banquinho e olha para todos com ares de quem caga cheiroso. Zeferino senta-se rindo de tudo e todos, parecendo ouvir piadas do espírito de Dragonetti e contar piadas para o falecido Bottesini. Danúbio, com o contrabaixo na mão, ainda em crise sobre como tocar com o arco, mas pelo menos bem resolvido com os arcos da vida. E eu com meus pum-pum-puns e ronc-roncs assumidos, quase familiarizada com o naipe capenga, se não fosse o maldito nervosismo…
Começamos o ensaio.
Zenilda dá de tocar forte a sua desafinação e a implicar com qualquer nota afinada que ousasse sobressaí-la.
– Zeferino, afina essa nota!
– Danúbio, segura o arco direito!
– Duda, esse seu som tá horrível!
E o clima começa a esquentar:
– Não concordo com esse dedilhado!
– Eu acho legal!
– Você se acha a tal, né? Com essa afinação mais troncha que essa sua…!
– Você que vá tomar … conta do seu arco!
– Ô tábua de tocar contrabaixo, só porque aquele contrabaixista caquético e vesgo enxerga duas de você, não quer dizer que você toque por duas pessoas!
Entre desaforos e berros, de repente a Zenilda sai correndo pro banheiro, e fica por lá.
Eu saio correndo para o outro banheiro e também fico por lá.
– Cadê a caixa de primeiros socorros, gente?
– Só tem caixa quando é ensaio da orquestra. Ensaio de naipe tem não…
– É sempre assim: quanto mais gente tocando, mais m$%& soando…
– Pois é, o naipe de contrabaixo é o pum que anuncia…
– Então vamos para casa, porque hoje já cumprimos a nossa função de peido da orquestra!…
E assim, o ensaio acaba…
Segredos Contrabaixísticos de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc by Voila Marques is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas License.