Texto postado na Revista FCBR.
Estudo contrabaixo numa escola.
Felizmente, o curso é de graça porque, se fosse pago, não poderia pagar as infindas prestações do meu contrabaixo. Consegui “dividívidas” por 24 meses, e então poderei finalmente ter o meu contrabaixo só pra mim, sem sociedade da loja, no próximo Natal!
Morri de amores pelo meu contrabaixo quando o vi, tristinho e deprimido, numa vitrine de loja, lá no Centro.
Das charmosas lojas de lá, sei que muitas mulheres prefeririam um casaco bonito, um chapéu ou mesmo um cachorrinho de estimação, mas eu gamei naqueles olhinhos dele que só eu enxergo, e naquele sôfrego psiu que ele me fez da vitrine, só para que eu olhasse para aquela melodramática situação operística dele na vitrine, tendo que dividir espaço com vários instrumentos, que eram capazes das mais vis atitudes, tudo por causa do malvado vitrinista, que só queria saber de amontoar os instrumentos todos na vitrine, e eles que se danassem por um lugar aos olhos dos transeuntes.
Depois que seu antigo dono – um velhinho contrabaixista de orquestra – morreu, seus filhos preferiram vendê-lo em uma loja, assim como o apartamento e todas as pequenas relíquias que o bom velhinho juntara ao longo de muitos anos de esporro e chilicote de maestro e às custas de muitas intrigas orquestrais…
– E o que faremos com este rabecão?
– Já que estamos em junho, que tal uma fogueira?
– O vovô ia ficar feliz de ter uma vela de contrabaixo de verdade, assim tão grande, no bolo dele!
Em poucos dias, o pobre contrabaixo passou então a morar numa empoeirada loja de terceira categoria, à espera de alguém que conseguisse enxergá-lo através de toda a vaidade instrumental que o sufocava na vitrine.
A bateria com aquele seu véu de acessórios foi a primeira a deixar cair pratos e parafusos no contrabaixo, que levou um susto e algumas escoriações.
– Ui! Vê se olha por onde anda!
– Pra quê? O importante é ver com quem se anda, pra eu te dizer quem eu sou!
– E quem é você?
– Sou quem vai acabar com a sua paz quando você estudar de dia e quando você tocar na noite! Eu não vou deixar nem um ronquinho seu aparecer, e o meu baterista vai atravessar com tanta classe, que vão pensar que o culpado é você!…
Enquanto isso, mais pratos e parafusos caíam em cima do contrabaixo! E o mau-caráter do vitrinista ria a cada trombada de instrumentos ao rearrumar ou espanar a maldita vitrine…
Aí foi a vez do teclado… Troncho e malcuidado, gostava de cair em cima do contrabaixo só para que aquele seu horroroso lá do diapasão desafinado soasse ininterruptamente. Aquilo era uma lá de raspão, nunca um diapasão!
– Não dá pra parar com esse lá-mento, não?
– Trate de se acostumar, ô meninote! Quero ver a sua cara quando tiver que afinar pelo meu lá! De tão baixo, suas cordas ficarão tão frouxas, que tome cuidado para as suas calças não caírem! – debochava o desalmado teclado.
A vitrine se abriu, e mais um instrumento foi jogado na vitrine.
Surpreso, o contrabaixo só teve tempo de balbuciar:
– P-primo?
– Qual é, camarada? Que primo, o quê? Só porque eu sou um baixo elétrico, você vem apelar pra histórias de família? E na hora de arranjar trabalho, desde quando fomos parentes, hein? E na hora de tocar, desde quando fomos da mesma família? Vá catar coquinho, Mané!
E a vitrine se abriu mais uma vez…
Ah, a clarineta!… Linda clarineta! Formosa clarineta! Bela clarineta!
E a clarineta passou a encher de poesia a solidão do contrabaixo… O tempo passando, passando, e estávamos quase no Natal…
E um dia, sem sequer um adeus, ela some nas mãos de um menino, cuja mãe tivera a coragem de tirar a doce clarineta do alcance dos seus olhos e dos seus safados pensamentos…
– Puxa, não tivemos nem um esbarrãozinho sequer!… Nem um guincho… – lamuriava-se o contrabaixo masoquista, enquanto as lágrimas escorriam por sobre o seu verniz…
Até que um dia, uma gosma marrom caiu em seu ombro.
Com o susto, a primeira coisa que pensou foi em pombos.
– Mas, pombas, aqui dentro não tem pombos!
Ele se virou pra cima e, indignado, viu uma batuta estrategicamente escondida na prateleira acima da sua voluta.
A batuta pega em flagrante, gritou:
– Não fui eu! Foi você!
– E não adianta fazer merda e querer colocar a culpa nos contrabaixos, porque eu conheço essa técnica, ouviu?
De repente, uma moça passou em frente à vitrine e parou.
– Xii! Fiquem quietos – alguém gritou.
Quando a moça já ia embora, ela ouve bem baixinho: psiu!
Curiosa, ela volta os olhos para a vitrine à procura do dono do sôfrego psiu… E vê, atrás de um teclado velho, de uma bateria toda despencada e de um baixo elétrico exibido, um contrabaixo todo melecado e cheio de remendos…
Foi paixão à primeira vista. Ela olha, e olha, e olha o contrabaixo. Pensa, repensa e, enfim decide entrar na loja.
Depois de meia hora de ansiedade e falta de ar, o contrabaixo vê a vitrine se abrir.
– É isso aqui, dona?
O contrabaixo, emocionado e pego de surpresa, não tem nem tempo para discursos, mas improvisa um:
– Tchau, bundões! A gente se vê nos palcos da vida!… E cuidado comigo!…
E assim começa a parceria de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc e seu contrabaixo…
Segredos Contrabaixísticos de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc by Voila Marques is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas License.
« (Segredos Contrabaixísticos de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc) nº 3 – Dois Elefantes… (Segredos Contrabaixísticos de Duda Pum-Pum-Pum Ronc-Ronc) nº 5 – O segredo do velho contrabaixista… »