(Em resposta e agradecimento à mensagem de Emerson Louro, no Fórum Contrabaixo BR.)
– Tia, quero estudar contrabaixo, mas sou canhoto… E agora?
– Bem, primeiro leia o texto. Depois…
Talvez possa parecer polêmica a minha opinião sobre o assunto, mas sou radical neste quesito.
Penso que o estudo de um instrumento musical é uma questão de aprendizado e de condicionamento.
Quando comecei a estudar contrabaixo, mesmo sendo destra, se meu professor tivesse dito para eu apoiar o contrabaixo no meu lado direito e fazer o dedilhado no braço do instrumento com a mão direita, eu teria feito do mesmo jeito, até porque descobri ser ambidestra muito tempo depois.
Por ser uma coisa nova a ser aprendida, penso que qualquer pessoa possa fazer o mesmo.
O estudo do contrabaixo começa usualmente pela postura no instrumento, passando em seguida para a posição da mão esquerda, em que aluno passa a prender algumas notas com os dedos, com a mão parada numa mesma posição. Para emitir o som das notas, o aluno “belisca” ou “puxa” a corda com um ou dois dedos da mão direita, técnica que denominamos “pizzicato”.
Para prender a corda com a mão esquerda é necessário muito mais pressão do lado esquerdo do corpo do que do lado direito já que, durante algum tempo, o pizzicato da mão direita não deve ser feito com muita pressão, para não formar bolhas nas pontas dos dedos (o uso de mais pressão na mão direita na execução do pizzicato é gradativo, conforme os dedos passem a ter mais resistência às cordas).
Por conta desse “desequilíbrio” entre a pressão da mão esquerda e a pressão da mão direita, penso que deve ser muito mais cômodo para quem é canhoto entender e executar esse procedimento “destro” de ser.
Todos os canhotos que conheci, até hoje, fazem movimentos considerados destros, como escrever e ler da esquerda para a direita e dirigir carro da forma convencional.
Logicamente que, se antes de tocar contrabaixo, você passou anos tocando violão ou outro instrumento de cordas dedilhadas (guitarra, baixo elétrico, cavaquinho ou bandolim) ou de cordas friccionadas (violino, viola, violoncelo) com as mãos invertidas, será bem difícil uma readaptação das mãos no contrabaixo.
Aí, a “culpa” desta dificuldade não estará no contrabaixo, mas sim na forma que você aprendeu o instrumento que o precedeu, seja por autodidatismo, por desconhecimento, por achar que canhotos devem fazer tudo ao contrário, ou pelo que for.
Se você estiver inserido nesse “modelito”, aprender um outro instrumento como destro é algo pra lá de desestimulante e pouco produtivo, mas se você quiser mesmo isso, terá que ter muita concentração nos estudos e foco nos objetivos, certo?
Se já é difícil para muitos destros passar de um contrabaixo elétrico para um contrabaixo acústico – são instrumentos diferentes, certo? -, quiçá passar de canhoto para destro e em instrumentos diferentes…
Se me fosse dada a oportunidade de descrever o que para mim seria um inferno instrumental, garanto que não seria estudar oito horas por dia, ou tocar pizzicato com os dedos com bolhas de sangue estouradas em cada dedo da mão direita. Inferno instrumental, para mim, seria aprender outro instrumento de forma invertida (de canhoto para destro), depois de tocar um outro como canhoto, por tempo suficiente para automatizar os movimentos e ter fluência nele.
Escrevo isso por que, antes de tentar inverter as mãos, é importante frisar a qualidade de tempo que se tem ou teve com o instrumento tocado como canhoto. Uma pessoa que fez somente as primeiras lições, que estude muito pouco o instrumento ou que tenha pouquíssimo contato com ele, talvez ainda consiga inverter as mãos, não sem sacrifício, mas com o sacrifício menor do que quem já o toca há muito mais tempo. Sacrifício mesmo para quem não estuda é passar a estudar.
Agora, reaprender um mesmo instrumento de forma invertida (de canhoto para destro) não deve ser tão difícil quanto aprender outro instrumento de forma invertida.
Para escrever isso, fui pegar o meu contrabaixo com as mãos invertidas (de destro para canhoto). Pode não haver fluência no que faço, pois isso requereria muito estudo, mas não me pareceu ser algo “inaprendível”.
Para quem já toca o contrabaixo elétrico – com fluência – como canhoto, por exemplo, e quer passar para o acústico tocando da mesma forma -sem fazer adaptações de arcadas, por exemplo -, sugiro que siga uma carreira em que só haverá um contrabaixista de acústico no palco (se for o caso), se possível em música popular ou jazz, já que na música erudita dificilmente há somente um contrabaixista no palco, sem contar que é preciso ter experiência em orquestras ou em outras formações, exatamente para crescer profissionalmente, e um contrabaixista canhoto, que toque como canhoto sem nenhuma adaptação, vai “destoar” do conjunto, terá muitas dificuldades de adaptação ou mesmo poderá nunca ser chamado para trabalhos, exatamente por conta dessas “diferenças”.
Logicamente, se você tocar em uma orquestra com um contrabaixo acústico feito exclusivamente para canhotos e inverter as arcadas marcadas pelo seu chefae de naipe, a única diferença “visual” será apoiar o contrabaixo no seu lado direito. Só pense que essa é uma solução digamos “final” já que, antes disso, você terá que ter uma solução para fazer as aulas e para estudar, certo?
Eu não acredito que uma pessoa que nunca tocou um instrumento de cordas na vida possa ter dificuldades para aprender o contrabaixo da forma convencional, somente porque é canhota. Músicos precisam das duas mãos para tocar, e as funções de cada uma delas são fruto de estudo e condicionamento. Nada que não possa ser aprendido da forma convencional.
Inverter as cordas do contrabaixo requer também modificações na estrutura física dele, para sustentar a pressão inversa das cordas sobre o tampo, e limita o uso do instrumento em situações adversas.
Por exemplo: tocamos um instrumento grande, pouco portátil e, muitas das vezes, precisamos tocar no contrabaixo disponível no local, seja ele de colegas ou arranjado pela produção, etc. Isso acontece muito em viagens, já que transportar o contrabaixo exige uma infraestrutura cada vez mais difícil, como cases, negociações com companhias aéreas, especialmente se a viagem não for de ônibus.
As chances de você arranjar um contrabaixo acústico com as cordas invertidas são nulas. Como você vai fazer o show ou o concerto nessa situação? Não vai, não é mesmo?
Pense que em viagens, além de haver grandes chances de não levarem o seu contrabaixo, há chances até maiores do dono do contrabaixo não querer que você inverta as cordas, e chances de você nem chegar a ter tempo de invertê-las, porque isso demora tanto para fazer, quanto para o instrumento se adaptar à mudança, com riscos de som de lata e desafinações de cordas durante a apresentação.
Mas bem antes disso, como você fará para ter aulas? Levará toda semana o seu contrabaixo para a escola ou para a casa do seu professor? Complicado, cansativo e desestimulante.
Então você vai sempre levar o seu próprio contrabaixo para as aulas e/ou para os trabalhos? Ótimo. Só pense que, primeiramente, você precisará de um instrumento feito exclusivamente para você, com estrutura física interna adequada às inversões e não somente com as cordas invertidas.
Caso você pense em ter um contrabaixo em cada lugar – um em casa, um na escola, etc. -, bem, um contrabaixo feito por luthier não é baratinho e, caso você desista de tocar o contrabaixo acústico, pense que vendê-lo talvez seja algo muito complicado, uma missão quase impossível. Você não vai querer que aquele seu contrabaixo canhoto – pelo qual você pagou uma grana – vá servir de enfeite de parede, não é mesmo?
Depois, você precisará de carro ou de verba exclusiva para o táxi, já que precisará levar o seu contrabaixo a todas as aulas (uma ou duas vezes por semana). Quando você tiver ensaios, também precisará levar o lindo. Se os ensaios forem em orquestra sinfônica, lá vai você atrapalhar a hegemonia do conjunto!… Esse deve ser um dos poucos casos em que um elefante incomoda muita gente e um mesmo elefante incomoda muito mais…
Tive um aluno que não queria nada com o estudo do contrabaixo. Provavelmente, estudava música por imposição do pai. Faltou o suficiente para ser reprovado, não tinha contrabaixo em casa e não ia nem estudar no contrabaixo da escola.
Um dia, fui chamada à coordenação para tomar ciência de um documento em que o pai da criatura pedia a aprovação do filho, alegando que ele “sentia dificuldades em acompanhar as aulas, por ser canhoto e as cordas do instrumento não estarem invertidas”.
Respondi que, numa escola de música era impossível ter um contrabaixo exclusivo à disposição de um aluno, assim como era impossível inverter as cordas do instrumento a cada início e fim de aula do menino.
Aleguei também que o aluno sequer estava fazendo uso da mão direita com o arco, já que ele ainda estava estudando somente o dedilhado inicial da mão esquerda (exatamente a mão que os canhotos têm mais controle) com pizzicato na mão direita. Perguntei se para aprender a dirigir ele tiraria carteira de habilitação na Inglaterra.
Mesmo assim, fui “aconselhada” pela coordenação da escola a aprovar o monstrinho, para “evitar problemas”…
Não conheço, mas deve existir quem tenha solucionado o impasse de ser canhoto sem inverter as cordas, somente apoiando o contrabaixo do lado direito. Com isso, o dedilhado no braço do instrumento passa a ser feito com a mão direita e o arco e/ou pizzicato passam a ser tocados com a mão esquerda.
Se esta for a sua opção, ela criará alguns empecilhos se você tiver sonhos de ser um contrabaixista de orquestra ou de banda sinfônica, conjuntos que precisam de mais de um contrabaixista fazendo o mesmo tipo de movimento com o arco, e que primam por um “equilíbrio” auditivo e visual.
Assim – sem adaptação da escrita das arcadas – provavelmente, você terá que se sentar sozinho e na última estante, para haver mais espaço para a sua performance e para a performance dos outros, já que não haverá nenhum contrabaixista destro do seu lado direito, e você não ficará no lado esquerdo de ninguém.
Na orquestra, a direção do arco – se para a direita ou para esquerda – é marcada na partitura pelo chefe de naipe. Como você estará na estante sozinho, precisará marcar sempre as arcadas invertidas: senão, quando todos estiverem com o arco na mão direita, caminhando para a direita, do talão para a ponta, você estará com o arco na mão esquerda, caminhando com o arco para a esquerda e, mesmo que para você ele esteja sendo também tocado do talão para ponta, para quem assiste você estará tocando da ponta para o talão. Visualmente, isso daria a impressão de que os arcos do naipe estariam vivendo uma relação conturbada, com muito beijo, trombada e brigas, em que cada um vai dormir de cara virada para o outro…
Lembrei agora que, com aquela opção de cordas invertidas, você poderá também apresentar outras diferenças “estéticas” em conjuntos de contrabaixistas: quando houver passagens tocadas em uma só corda ou com movimentos ascendentes ou descendentes, enquanto todos os colegas estiverem numa corda aguda você, supostamente, estaria fazendo o mesmo desenho numa corda grave. Enquanto todos estiverem fazendo uma escala ou trecho musical com desenho ascendente da corda mais grave para a mais aguda, visualmente você estará fazendo o desenho da corda mais aguda para a mais grave.
Outra questão, frequentemente problemática dentro de uma orquestra, é a área necessária para que o contrabaixista toque sem esbarrar nos próprios colegas do naipe, assim como nos de outros instrumentos. Um contrabaixista canhoto, que tocasse somente invertendo o lado em que apoia o contrabaixo, necessitaria de uma área maior para tocar, já que seu arco caminharia em direção oposta ao dos colegas do naipe. Como isso dificilmente aconteceria dentro de uma orquestra, o contrabaixista teria que inverter todas as arcadas, para sempre tocar com o arco na mesma direção dos demais contrabaixistas. Desnecessário escrever que precisaria haver uma partitura exclusiva para o contrabaixista canhoto, pois quem se habilitaria a ler numa parte com as arcadas copiadas todas ao contrário?
No mais, volto a dar a minha opinião sobre este assunto: usamos as duas mãos fazendo movimentos distintos para tocar instrumentos de cordas. A divisão das funções das mãos no contrabaixo é uma convenção e, como tal, é para ser aprendida e treinada, independentemente se você é destro, canhoto ou ambidestro.
Essa convenção de tocar instrumentos de cordas (alaúdes, violas da gamba, etc.) com a mão esquerda fazendo a posição das notas no braço do instrumento, e com a mão direita dedilhando as cordas e/ou passando o arco nelas foi criada e desenvolvida através dos séculos, muito antes do desenvolvimento e propagação da leitura e da escrita, da descoberta das diferenças de utilização das mãos nas pessoas, e da descoberta das diferentes regiões do cérebro utilizadas para cada uma, assim como foi desenvolvida muito antes do extinto preconceito contra os canhotos, que por muito tempo existiu.
Acho que dá muito mais trabalho ser um canhoto “autêntico” do que tocar contrabaixo da forma convencional. Acabo de fazer um teste: pegue um caderno, e escreva com a mão esquerda, começando no fim da linha, da direita para a esquerda. Sairá assim: “oirártnoc oa odut revercse euq met êcoV”.
Eu me saí bem, mas acredito que você também se sairá muito melhor tocando contrabaixo!”
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